Atletas brilhantes. Ícones culturais.
A combinação é explosiva e resulta normalmente em ídolos de infância, entradas em livros de História e outro tipo de manifestações de paixão.
Esta é uma série de artigos que traz a história de várias destas personalidades e tenta explicar porque foram atletas de eleição, ícones da cultura pop e qual o legado que deixaram.
Não serão incluídos atletas ainda em atividade.
O Atleta
Muhammad Ali (ou Cassius Clay, mas já lá vamos) foi um pugilista na categoria de pesos-pesados. Tanto na sua fase amadora, como depois na profissional, Ali foi um pugilista brilhante, capaz de bater recordes e impressionar todos os adeptos da modalidade.
Para se ter noção, Ali enquanto atleta foi tão bom e tão reconhecido que a sua alcunha foi The Greatest.
A BBC nomeou Ali como o atleta do século – de todas as modalidades desportivas – e as publicações de boxe reconhecem, unanimemente, que Ali é o GOAT (greatest of all time) da modalidade.
Enquanto amador, Ali venceu os Jogos Olímpicos de 1960, em Roma, sem perder um único ponto. Todas as vitórias nos Olímpicos de 60 foram por 5-0.
Depois de se ter tornado profissional, Ali foi campeão do mundo de boxe durante 9 anos e 5 meses, para além de inúmeros títulos regionais e nacionais.
Numa carreira profissional que durou 21 anos e em que Ali não lutou durante quase meia década – curiosamente, quando estava no pico das suas capacidades – o pugilista perdeu apenas 5 combates e nunca por KO. 3 deles já com 38 anos e as suas capacidades motoras francamente debilitadas.
Outra forma de avaliar a carreira de um pugilista é perceber os prémios monetários durante a carreira.
Ajustados à inflação, os combates de Ali valeram-lhe mais de 2 mil milhões de dólares durante a sua carreira – uma marca sem paralelo no desporto.
Muhammad Ali: O Ícone Cultural
Muhammad Ali é um dos nomes mais reconhecidos na História do século XX e seguramente um dos atletas mais adorados da História do desporto. Por muito popular que o boxe seja em alguns círculos sociais, obviamente que não é o tipo de desporto que produz heróis conhecidos globalmente, como o futebol, ténis e basquetebol.
Porque é Ali, então, uma das maiores figuras dos últimos 100 anos de História? Justamente por ter sido muito mais do que um atleta.
Ali nasceu no Kentucky com o nome Cassius Clay, em 1942. Numa época de segregação racial, aprendeu desde novo que só poderia frequentar espaços abertos à comunidade negra norte-americana.
Era-lhe vedado o acesso à própria Igreja que, enquanto miúdo, queria frequentar. Restaurantes, lojas de roupa, supermercados… todo e qualquer espaço comercial tinha acesso restringido à comunidade afro-americana.
Quando Cassius Clay vai até Roma, em 1960, para os Jogos Olímpicos, encontra uma situação completamente distinta. Na Europa não existia segregação racial e todos eram livres para circular em todos os espaços.
Na Aldeia Olímpica, Cassius torna-se uma estrela entre jornalistas, adversários e outros atletas. No ringue, vence todos os seus combates e regressa a casa com a medalha de ouro ao peito e a bandeira dos Estados Unidos nas costas. Por momentos, é um herói cuja cor de pele não belisca minimamente a percepção da sociedade civil.
Nem dois dias passaram, após o regresso aos Estados Unidos, quando na sua cidade-natal foi expulso de um bar por ser negro. Angustiado, Cassius Clay rasgou a bandeira dos Estados Unidos e deitou a sua medalha ao rio Ohio e ganhou consciência de que o sucesso desportivo não ia amenizar o racismo e a segregação.
Começou a ler sobre o assunto, a participar em convenções políticas e a sua vida mudou quando se cruzou com Malcom X, o porta-voz da luta racial a par de Martin Luther King.
Nesse dia, morreu Cassius Clay, mas nasceu Muhammad Ali. Um novo nome, uma nova luta, o mesmo espírito invencível. Ali tornou-se rapidamente o poster boy da luta contra o racismo.
Recusou-se a cooperar com um sistema com o qual não concordava e tornou-se um ícone de todos os negros norte-americanos. Ao mesmo tempo, nos ringues, derrubava todos os seus adversários com facilidade e não deixava dúvidas sobre quem era o pugilista mais temido do planeta.
Quando estourou a Guerra do Vietnam e a sociedade americana se dividiu em duas – pró e anti-Vietnam – Ali recusou-se a partir para o sudeste asiático e a lutar pela causa. Tornou-se figura de proa do movimento anti-Vietnam e da contracultura do país.
Foi condenado a 5 anos de prisão por recusar a convocatória militar e todos os seus títulos de boxe lhe foram retirados. Durante esses anos, e apesar de estar no pico das suas capacidades físicas e mentais, Ali não lutou profissionalmente.
Martin Luther King e Malcom X foram assassinados, Ali impedido de praticar desporto – todo este contexto só serviu para fazer crescer a sua aura revolucionária e de luta pelos seus ideais.
Ali teria sempre ficado na História, de qualquer das formas. Os seus discursos pré-combate eram cheios de piada, confiança e carisma – era a epítome de um atleta com star power. A sua performance desportiva era sem paralelo, com uma mistura de agilidade e poder que nunca tinham sido vistas até então.
O pugilista já teria sido adorado, mas o Homem e a sua causa tornaram-no imortal e idolatrado globalmente.
O Legado
Não é fácil discernir concretamente o legado de alguém com a biografia de Ali. De certa forma, a sua influência foi e continua a ser sentida até aos dias de hoje e é imensurável.
Desportivamente, a herança de Ali é enorme. Inventou novas estratégias de combate, como o dope-in-the-rope, em que os pugilistas começaram a utilizar as cordas do ringue como tática defensiva.
Mudou o protótipo de pugilista de pesos-pesados, que até então era baseado na força pura e a partir dele passou a incorporar também a velocidade e agilidade como componentes fundamentais.
A popularidade de Ali foi tanta que também deu origem ao pay-per-view, o sistema televisivo em que os consumidores podem subscrever um canal de televisão apenas durante um par de horas, para assistirem a um evento desportivo.
Na sociedade civil, Ali foi importantíssimo para colocar fim à segregação racial e para o empoderamento de camadas sociais mais desfavorecidas.
Dezenas e dezenas de livros, filmes e peças de teatro foram feitos sobre Ali e os seus feitos ou crenças.
Venceu dois Grammy por álbuns spoken word, abrindo um mercado discográfico para atletas e outras figuras aparentemente alheias ao mundo da música.
Dá hoje nome a aeroportos, recintos desportivos e tem um número quase infindável de estátuas em vários países, especialmente no continente africano e na América do Norte.
Quantos quiseram e querem ser Ali, depois de Ali?
Essa é a maior marca do atleta, do Homem e do estatuto de quase semideus em que se transformou Muhammad Ali.
É esse o seu legado fundamental.